quarta-feira, 26 de julho de 2017

SACRIFÍCIO A FREYR: NOTAS SOBRE RITUAL DE SACRIFÍCIO NO SERIADO VIKINGS



 

Na história do cinema e das representações artísticas ocidentais, as representações envolvendo rituais, festivais ou cenas religiosas da fé nórdica pré-cristã são muito raras ou praticamente inexistentes. Isso gerou um imaginário onde valores exóticos e mesmo macabros acabam ocupando as informações que a sociedade atual mantém sobre o tema da antiga religiosidade da Escandinávia (LANGER, 2016).

Em particular, uma cena da série Vikings (terceira temporada, terceiro capítulo: Warrior's fate) vem ocupando um particular interesse dos espectadores e mesmo do público ligado ao neopaganismo, por justamente conceder supostos detalhes de um ritual pouco conhecido entre os nórdicos, os sacrifícios relacionados aos vanes. Anteriormente, a série já havia detalhado outros cultos, mais famosos, envolvendo o templo de Uppsala na Suécia. Primeiramente, detalharemos a cena, analisando cada pormenor fílmico e, em seguida, realizaremos algumas reflexões sobre o imaginário do antigo ritual nórdico na arte ocidental.

No episódio, o acontecimento tem lugar em um assentamento nórdico da Inglaterra, onde, após a primeira e bem sucedida colheita, os pagãos resolvem realizar um culto ao deus Freyr para comemorar seu êxito. Ao som de tambores e chocalhos, o culto é presidido pela personagem Lagertha, iniciado após um símbolo ser marcado com sangue em um bloco de pedra. Ao contrário da maioria das pessoas presentes, Lagertha porta uma indumentária totalmente branca e realiza uma invocação ao deus Freyr, afirmando que ele é a deidade da luz e da abundância, filho de Njord e aquele que decide quando a luz e a chuva chegam e quando o solo será fértil. Uma procissão se aproxima portando diversas tochas acesas e reunindo-se em volta de um bovídeo, que é decapitado por um homem, sendo o seu sangue recolhido por diversas pessoas ao seu redor. Através do sangue sacrificado, ele deverá fertilizar a Mãe Terra com seu falo, fazendo com que o seu útero fecunde. Ao redor do sacrifício, uma estátua com figura antropomórfica aparece salpicada de sangue. Após isso, Lagertha molha os dedos com o sangue do animal, passando em diversas partes de sua face e peito, enquanto duas pessoas escorrem tigelas de sangue sobre seu corpo. Ela mesmo carrega outra tigela e, com ajuda de duas mulheres, borrifa o líquido sacrificial sobre a terra, aberta com sulcos para a plantação. Também destacamos a presença de uma trilha sonora de coro rítmico com compasso ternário, concedendo à cena um caráter ainda mais misterioso. 

Figura 1: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), reconstituindo a
morte de um bovídeo para o deus Freyr. Fonte da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

 
 

A realização de sacrifício (blót) a Freyr para obter boas colheitas (til árs) é algo respaldado em algumas fontes medievais, destacando seu aspecto de deus da fertilidade e fecundidade (BOYER, 1997, p. 58). A prosperidade devido a Freyr aparece em Hakonar Saga Aðalsteinsfóstra 14 e surge relacionado à expressão friðr (paz), onde o segundo brinde é dedicado a ele para se obter boas colheitas. A invocação de Lagertha, ao caracterizar o filho de Njord como deus da abundância, que controla as chuvas, os raios do Sol e a vegetação sobre o solo, advém de uma famosa frase de Snorri (Gylfaginning 24). O detalhe do falo é importante, pois é atestado em muitas fontes, como no relato de Adão de Bremen (Gesta Hammaburgensis IV) e na narrativa de Volsi (Völsa þáttr), além de comumente ser interpretado como o principal detalhe da estatueta de Rallinge (século X d.C.).

O detalhe da pintura a sangue de um desenho geométrico semelhante a um X com pontos, inserido dentro de uma forma quadrangular, não ocorre em gravuras de monumentos da Era Viking. Signos formados por quatro runas dispostas sobre duas hastes, denominadas pelos epigrafistas de cruzes rúnicas, surgem desde o período de migrações, como na fíbula de Soest (MAREZ, 2007, p. 130). Mas a forma apresentada na cena é mais condizente com os padrões simbólicos utilizados na Islândia a partir do final do medievo, popularizados nos famosos galdrastafur e nos grimórios islandeses.

O detalhe do boi decapitado é um pouco mais complexo. O sacrifício realizado para o deus Freyr (Freysblót) geralmente envolvia cavalos e javalis, e mais raramente bois. Na Viga-Glum saga 9 um boi velho é oferecido a este deus; na Brandkrossa þáttur 1, um fazendeiro mata e oferece um boi para Freyr, sendo em seguida realizado um banquete sacrificial (blótveizla) aos membros da comunidade. Este é um elemento ausente do episódio da série e fundamental para sociedades que dependiam diretamente de seus animais em um estilo de vida e clima inóspitos: o consumo e aproveitamento total das vítimas imoladas. Alguns pesquisadores consideram o blótveizla como um importante momento de unidade social, estabelecendo uma ligação mágica e propiciatória entre os deuses, os homens e seus ancestrais (BOYER, 1986, p. 186). O detalhe do sangue também é verificado em diversas fontes. O sangue
sacrificial (hlaut) de animais ou humanos era borrifado sobre estátuas por todo o templo, ou local da consagração, e nas pessoas (Kjalnesinga saga 12 e Hákonar saga góda 14, que também confirmam o detalhe das fogueiras e tochas da cena de Vikings, descritas em uma cerimônia em Trøndelag, Noruega). Alguns pesquisadores acreditam que a aspersão do sangue (stokkva fórnarblódi) era o momento central do rito sacrificial nórdico (BRAY, 2004, 125). Códigos de leis islandesas, como o Úlfljótslog, mencionam que os líderes utilizavam anéis que eram aspergidos de sangue sacrificial obtido em rituais. O sangue invocava o poder da deidade sobre o mundos dos homens, como em cerimônias para obter informações do futuro (blótspánn, inclusive citado no poema éddico Hymiskvida 1).

Quanto a uma mulher presidir o ritual para Freyr, apresenta-se como um detalhe equivocado. Justamente o simbolismo de virilidade e falicismo da deidade é algo exaltado nas fontes, seja pelo seu caráter de soberania, de poder militar ou de fecundidade, levando a maioria das descrições do freysblót a serem liderados por figuras masculinas (REAVES, 2008, p. 5). Quando surgem mulheres nas fontes, elas estão relacionadas a uma procissão com uma imagem dessa deidade em uma carroça, realizando uma peregrinação na primavera para abençoar a terra de uma determinada comunidade (como em Ögmundar þáttr) e relacionadas aos simbolismos da hierogamia. A túnica branca utilizada por Lagertha também é fantasiosa. Justamente pelo contrário, a cor preta era relacionada a Freyr — segundo a Gesta Danorum 1, os animais imolados ao deus eram geralmente de coloração escura —, também identificada à alma e à fertilidade em outras tradições pré-cristãs (REAVES, 2008, p. 10). 

Figura 2: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), momento em que
Lagertha é banhada em sangue sacrificial. Fonte da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

 


A cor branca tem sido uma opção canônica para os artistas europeus representarem os sacerdotes e sacerdotisas das religiosidades pré-cristãs em geral, desde o romantismo oitocentista, até mesmo para os druidas. Nas pinturas Ofring til Tor (1831, de Johan Lund) e Nerthus (1909, de Carl Emil Doepler), ambos os sacerdotes nórdicos possuem longas barbas e indumentária branca, este último um detalhe também presente na profetisa ressuscitada por Odin em uma pintura de Carl Doepler de 1900. Na cena da série Vikings, essa cor certamente foi utilizada não somente pela referência canônica da arte ocidental, mas para causar impacto cênico — logo depois do sacrifício, dois ajudantes despejam parte do sangue sobre o corpo de Lagertha, originando duas imensas manchas vermelhas por todo o comprimento da roupa. Algo que recorda a primeira cena da série televisiva Roma (HBO, 2005), quando a personagem Átia é aspergida com o sangue de um boi sacrificado, em referência ao mitraísmo oriental que penetrou no império romano. Como o grande público desconhece maiores detalhes sobre as religiosidades antigas da Europa, certamente os produtores de Vikings optaram por perpetuar uma referência fílmica consagrada e de forte impacto visual. Ainda mais fantasioso é o momento em que Lagertha, com ajuda de duas mulheres, borrifa o sangue sacrificial sobre sulcos retilíneos abertos sobre o campo (à espera da semeadura), numa referência à fertilidade. O equívoco nesse caso é que o ato de aspergir era considerado algo que devia ser realizado somente por homens, representando a fecundação de um ser feminino, a terra. Numa sociedade fortemente estruturada num simbolismo de dominação e submissão sexual, perpetuando o poder de penetração (o falocentrismo religioso, vide Hedeager, 2011, p. 115-118), seria lógico imaginar homens nesta tarefa. Até mesmo os camponeses europeus cristianizados (como a França do século XII d.C.) excluíam as mulheres destas ações que antecediam as colheitas, uma prática advinda dos tempos pagãos e que sobrevivia no cotidiano rural: “só o homem podia lavrar, malhar o trigo com o mangual ou podar as vinhas e as árvores (...) A terra era mulher, cabia ao homem fecundá-la” (VERDON, 2006, p. 47).

De maneira geral, a cena do sacrifício a Freyr foi mais correta do que a reconstituição de ritual em Uppsala, realizada durante a primeira temporada da série Vikings (episódio 8, Sacrifice): está menos sombria e exótica, sem sacerdotes calvos e com maquiagem escura sobre os olhos. Do mesmo modo, ao compararmos com outras cenas envolvendo religiosidade nórdica antiga no cinema (LANGER, 2016), ela é historicamente muito mais pertinente e detalhada, promovendo avanços no conhecimento de um público amplo sobre estes rituais antigos. O problema são seus pequenos equívocos, que tratamos ao longo deste pequeno ensaio, mas também de suas limitações sobre a funcionalidade dos deuses nórdicos. Devido a várias sistematizações, estudos
acadêmicos tradicionais ou popularizações de manuais, a visão que temos dos
deuses são de funções muito restritas e muitas vezes dicotômicas (especialmente a teoria da tripartição de Georges Dumézil). Odin e Thor são sempre vistos como deuses da guerra; Freyr, Freyja e Njord como deuses da fertilidade. Os primeiros seriam adorados pela elite guerreira, aristocracia e homens. Os segundos seriam cultuados exclusivamente por camponeses. Nesta visão, não há espaços para fronteiras ou dinamismos para outras funções sociais e outras características. Mas existem fontes que apontam elementos do deus Thor também para o mundo do campo: o simbolismo do martelo é um deles. Thor e Odin eram cultuados do mesmo modo por mulheres e nem sempre as deusas eram vistas como benignas ou defensoras extremadas do universo feminino.

No caso de Freyr, ele não era somente um deus da fertilidade ou adorado unicamente no universo rural. Seus aspectos de soberania e marcialidade são encontrados nos diversos cultos mantidos pela realeza, especialmente no sacrifício e consumo ritual de cavalos (DAVIDSON, 2001, p. 104), além do drama mítico e hierogâmico com Gerd (em conexão com a realeza sagrada). Ele está relacionado do mesmo modo a um simbolismo com embarcações e conexões com procissões náuticas com sentido religioso (funerário e também de fertilidade). A deusa Freyja não era somente ligada à sexualidade, mas também ao mundo marcial. O simbolismo do javali reflete a complexa natureza e os muitos aspectos que os deuses vanes possuíam e que vão muito além da sua mera classificação como deidades da fertilidade (PIRES, 2015, p. 11-22). Neste sentido, a série Vikings colabora para perpetuar a visão dicotômica que o Ocidente criou sobre os deuses nórdicos: de um lado, reis e guerreiros cultuando somente as deidades da guerra (os ases); de outro, os deuses que promovem a fertilidade dos campos (os vanes). Num mundo onde a fé não era estabelecida por textos sagrados, não existia sacerdócio profissional e a tradição era mantida pela oralidade, confluíam variações sociais e geográficas na religiosidade. Apesar do ritual servir basicamente como um momento de comunhão entre deuses e homens — e, neste sentido, a série Vikings é correta — ele era variável em sua forma e utilizado em contextos diferentes. O detalhe do sacrifício animal na cena do episódio (mas percebido sem a inclusão do blótzveila) pode colaborar para o público moderno pensar em um ritual mantido exclusivamente pela presença de uma morte sangrenta, sem maiores contextos.

Alguns analistas pensam atualmente a imolação nórdica de animais como reflexo da cosmogonia (a morte de Ymir e a subsequente criação das partes do mundo por meio de seus membros), onde o sacrifício explica a ordem da natureza e do mundo e a presença do hlaut seria a forma física onde o cosmos e a sociedade seriam renovados (BRAY, 2004, p. 135).


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Johnni Langer é professor na UFPB e membro do NEVE.
E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


Referências:

BOYER, Régis. Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997.

BOYER, Régis. Le blót. In: Le monde du double: la magie chez les anciens Scandinaves. Paris: Berg, 1986, p. 176-187.

BRAY, Daniel. Sacrifice and Sacrificial Ideology in Old Norse Religion. In:

HARTNEY, Christopher; MCGARRITY, Andrew (eds.). The Dark Side: Proceedings of the Seventh Australian and International Religion, Literature and the Arts Conference, 2002. Sydney: RLA Press, 2004, p. 123-135.

DAVIDSON, Hilda. The cult of Freyr. In: The lost beliefs of Northern Europe. London: Routledge, 2001, p. 103-107.

HEDEAGER, Lotte. Iron Age myth and materiality. London: Toutledge, 2011.

LANGER, Johnni. Fé, exotismo e macabro: algumas considerações sobre a Religião Nórdica Antiga no cinema. In: Revista Ciências da Religião, 2016 (no
prelo).

LANGER, Johnni. Blót/Sacrifício escandinavo. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 75-77; 428-433.

PIRES, Hélio. Vaningi: o javali e a identidade dos Vanir. In: Revista Brasileira de História das Religiões – Dossiê: Mito e Religiosidade Nórdica, n. 23, 2015, p. 11-22.

REAVES, William. The Cult of Freyr and Freyja, 2008. Disponível em: <www.academia.edu/9715739>.

VERDON, Jean. Camponeses: heróis medievais. In: História Viva 34, 2006, p. 46- 48.

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