quinta-feira, 20 de julho de 2017

A BRUXARIA NÓRDICA NO FOLCLORE



Nas últimas décadas muitos temas outrora considerados exóticos ou excêntricos tornaram-se prolíferos e de grande interesse da comunidade acadêmica. A bruxaria tem sido um desses aspectos humanos que vem suscitando grande interesse e discussões entre os historiadores. A magia sempre estivera fortemente presente nas terras ao norte da Europa e praticado por mulheres, como demonstram os avanços da arqueologia em que muitas sepulturas femininas eram adornadas por bastões, esculturas de animais totêmicos (ursos e lobos), pingentes e plantas alucinógenas (Langer, 2010, p. 180). Portanto, considerando a feiticeira em seu sentido mais simplório, alguém que se serve de práticas ritualísticas mágicas com o intuito de causar destruição e felonia a outrem, discorremos sobre algo advindo desde a Era Viking (793-1066 d. C.) e mesmo anteriormente. Todavia, ao referirmos sobre a resignificação dessas práticas mágicas antigas e dessa personagem, a feiticeira nórdica, mescladas a sua demonização, metamorfoses e reuniões noturnas para fins orgiásticos e canibalísticos (os sabás, figura 1), estamos nos referindo a uma ideia desenvolvida por uma elite clerical e colocada em prática em fins do século XIII por inquisidores que somente penetrará com força na Escandinávia a partir do século XIV e que será difundida por quase 300 anos por intelectuais católicos e protestantes. Nas últimas décadas o estudo da Bruxaria tem passado por inúmeros momentos e grandes saltos em pesquisas e sua faceta no contexto escandinavo vem ganhando força também. A Bruxaria na Escandinávia se concentra basicamente no período da pós-reforma, auxiliado por uma maior gama de documentos, o número de perseguições e a delineação mais clara da influência continental. Recuando à Idade Média central, aspectos da bruxaria e feitiçaria ali detectados quase sempre são englobados na confortável explicação de uma sobrevivência do paganismo nórdico. A temporalidade compreendida entre o mundo da Era Viking e a baixa idade média se demonstra essencial, pois liga de um lado a outro dois extremos da história nórdica, em que a simples feiticeira se ressignifica para a imagem complexa da bruxa, imersa no diabolismo pensado pelos teólogos e figura representativa da heresia (Mitchell, 1997, p. 81). Se na Noruega anterior ao séc. XIV uma mulher acusada de bruxaria era exilada, agora ela recebe a pena capital. Mesmo após o retroceder das perseguições na Europa, a Escandinávia ainda se veria palco de intensos julgamentos em fins do século XVII, como o notório caso da cidade sueca de Mora, em que mesmo tardiamente, muitos elementos tradicionais da crença em bruxas emergiram, como o rapto de crianças à Blåkulla, cujo diabo lá se encarregaria de presidir um sabá (Russel, 2008, p. 128, figura 1). Esse período nebuloso resultou, além de julgamentos e execuções, relatos e representações populares sobre essas mulheres dotadas de malignidade. 



Figura 1: Bruxas participando de sabá na presença do diabo. Igreja de Yttergran, Suécia, século
XV.

 

Muitos contos foram produzidos e perpetuados, sendo um acervo extremamente rico sobre o imaginário escandinavo. O colecionador de manuscritos islandês Árni Magnússon fora um dos precursores, no século XVIII, na catalogação de contos e lendas tradicionais, outrora, sempre tratados como fontes inferiores em relação às sagas. Antes do advento dos irmãos Grimm e a explosão pelo interesse nos contos tradicionais, estudiosos como P. C Asbjørnsen e Jørgen Engebretsen Moe, publicaram Norske Folkeeventyr (Contos Populares Noruegueses), além do escritor e bibliotecário islandês Jón Árnason, que depois de sua morte em 1888, teve sua gigantesca coleção de contos publicados entre 1954-1961. Assim como as sagas islandesas produzidas na Idade Média Central geram acalorados debates sobre as limitações dessas fontes e seu papel etnográfico confiável (Langer, 2010, p. 195), contos e canções folclóricas também passam pela mesma discussão, descartados por estudiosos que tendem a percebê-los como manifestações puramente literárias de gênios populares. O historiador precisa manejar essas múltiplas fontes. Afinal, assim como as sagas, elas representam vestígios únicos, em que suas crenças e religiosidades estão imbuídas como verdadeiros reflexos da sociedade. Autores como Daniel Sävborg atestam a dificuldade de se trabalhar com o folclore, porém reafirmam sua importância como fontes cuja oralidade pode lançar dados demonstráveis. Contos folclóricos não devem ser ignorados, até pela quantidade de relatos disponíveis em universidades e museus escandinavos. As imagens da bruxa nos contos estão relacionadas com o cotidiano da população e de seus medos. Em “A Mulher do Sacerdote que se transformou em cavalo”, coletado em 1932 de um informante nascido ao findar da primeira metade do XIX (Gonzáles, 2008, p. 70) revela uma variável em muitos contos: o medo da bruxa estar próxima ou dentro do âmbito familiar, a exemplo do conto em que o sacerdote descobre a perfídia da própria esposa. A exemplo do Islandês “A cavalgada da bruxa”, muitas bruxas são retratadas como mulheres de sacerdotes, como o folclore islandês registra sobre um homem bom e íntegro cuja bela e jovem esposa desaparece em todas as noites de natal. Nesse episódio é retrato uma ação recorrente entre as bruxas escandinavas que é cavalgar homens. Voo e montarias são desde sempre retratados em poesias, prosa e imagens, demonstrando ser uma verdadeira obsessão germânica. Muitos contos de tradição popular retratam mulheres cavalgando em objetos e animais, tais como lobos e ursos, e principalmente homens. Uma tradição escandinava que une desde a imagem no monumento Hunnested, datada de 975-1050 d. C. na Suécia, em que uma mulher cavalga um lobo e o doma com serpentes, aos contos do findar do período moderno em que perigosas mulheres cavalgam em seus maridos bons e religiosos. Cavalgar é retratado como o maior poder de uma bruxa e denota bem o medo da inversão dos papeis sociais entre homens e mulheres, principalmente se a experiente montadora for a esposa de um religioso. Em A Cavalgada da bruxa, a esposa de um pastor monta em um homem e, em alta velocidade, se dirige a uma reunião com doze mulheres e um religioso, e lá se gaba da forma como chegou, pois como atesta os demais membros, cavalgar um homem é a maior forma de poder que se pode desenvolver na bruxaria. No conto “Loft o Feiticeiro”, Loft é um jovem que se instrui nos estudos mágicos e “cavalga como fazem as bruxas” (Gonzáles, 2008, p. 88). Assim como Loft o folclore islandês legou relatos e contos cuja predominância de feiticeiros e bruxos são marcantes. Os Magos das Ilhas Westman e Calvagadas das Bruxaspossuem homens como mestres da magia e encontra paralelo com a especificidade com que a Islândia vivenciou a bruxaria e sua repressão na modernidade. Embora não seja a bruxaria exclusivamente prática feminina, foram elas as mais julgadas e condenadas em toda Europa, sendo que na Alemanha ocidental as ondas persecutórias entre 1561 e 1684 resultaram 1050 mortes, sendo 328 homens um dos maiores índices de participação masculina. A Islândia se demonstra uma região atípica, afinal, entre 1554 a 1720, dos 125 processos de bruxaria, somente 9 acusados eram mulheres. Magos e feiticeiros são os personagens recorrentes no imaginário islandês, mesmo quando a  personagem principal é uma mulher, sua participação se concretiza mais pela astúcia e inteligência que pelo magismo (Os Magos das Ilhas Westman). Outra característica do folclore islandês e seus relatos é a poucain cidência do pacto diabólico. Embora os tratados em toda Escandinava se demonstrassem críticos diante das acusações de pacto diabólico, os ensaios demonológicos sobre o tema eram pouco difundidos e os julgamentos breves. Diferentemente, Suécia e Dinamarca, esta a partir de 1617, se demonstraram mais engajadas nesse tipo de acusação (Mitchel, 2008 p. 126). Os contos folclóricos transmitidos são fortes reflexos da persistência popular na crença na aliança entre homens e o diabo durante todo o período moderno, mesmo que feitiçaria, diabolismo e apostasia já declinassem no seio da elite. Os religiosos são personagens frequentemente acusados de pacto demoníaco e o folclore norueguês é exemplar ao destacar um sacerdote histórico. O erudito Sæmundr Fróði (1056- 1133), estudioso do povo e dos reis noruegueses é o símbolo de sacerdote que poderia prever o futuro, detectar bruxas, romper feitiços e realizar grandes feitos. Sabedoria e magismo adquiridos mais pelos estudos das línguas clássicas que pela santidade. Nos relatos oitocentistas noruegueses, Sæmundr Fróði funda Escolas Negras e utiliza seus conhecimentos mágicos em situações cotidianas e conflitos de matizes econômica (colheitas, animais), sociais (brigas com vizinho, pastores) e mesmo religiosa (em alguns contos Sæmundr engana várias vezes o diabo ou é retradado como seu vassalo). Sæmundr Fróði fora um dos poucos islandeses a ter uma educação no exterior, na França ou na Alemanha, e ao regressar à Islândia teria criado a Escola Negra. Essas Escolas Negras do Diabo, na Alemanha conhecidas como Juppítersskóli, de acordo com os relatos existiam nas universidades medievais e formavam bruxos e exorcistas. Eram nessas escolas que os alunos recebiam o Cyprianus, livro muito difundido na Escandinávia, e que ensinava práticas de feitiçaria maléfica ou de proteção e cura. Para adquiri-lo , assim como outros livros supostamente escritos por Moisés ou Salomão, o estudante deveria renunciar ao batismo e entregar a alma ao diabo. Extremamente popular na Escandinávia, os feitiços cyprianus eram utilizados no seio rural por curandeiros que se valiam da típica magia germânica: remédios populares, orações e feitiços rituais. Os contos confirmam a tese de Stephen Mitchell, em que diferentemente dos clérigos ou da elite, é a população que abraça a ideia do Pacto Diabólico. Somente a partir de meados da Idade Moderna o pacto é amplamente utilizado em processos judiciais no mundo nórdico, principalmente na Dinamarca e Suécia. Mesmo em lugares em que a crença no pacto diabólico teve pouca ressonância vemos casos tardios de crenças em feitiçaria e pacto demoníaco, como na Islândia, em que um homem foi condenado em 1685 por um pacto realizado durante o sono (Mitchell, 2008, p. 134). As bruxas e feiticeiras são, sobretudo, causadoras de problemas e afetam principalmente as atividades do cotidiano. Em uma sociedade campesina, em que cuidar dos animais, preparar as bebidas e a manteiga se demonstram de grande importância econômica, muitas das acusações se davam por conflitos rotineiros sem explicações. A morte súbita de uma criança, a perda de um animal, baixa produtividade agrícola, não havia infortúnio que não pudesse ser imputado a algum indivíduo próximo (Thomas, 1991 p.433). Comumente é a bruxa da vila que se utiliza da magia para roubar leite ou estragar alimentos, ou prejudicar atividades comumente realizadas por mulheres. Em algumas sagas, as feitiçarias são responsáveis por mudanças climáticas, assim prejudicando fazendas de inimigos ou adoecer o rocim, o cavalo de tração (Langer, 2009, p.73-74). A bruxaria na Escandinávia e a imagem das bruxas se configuram como um verdadeiro e prolífero campo de pesquisa, afinal, suas representações se demonstram variadas (metamorfoses, casamento entre camponeses e maras dinamarquesas, magos). Recorrer ao folclore torna-se de grande ajuda para a compreensão da personagem bruxa e seu domínio no inconsciente coletivo dos homens do passado, cujas crenças e fé nunca estiveram tão distantes para o
pragmático estudioso de hoje. 


Autor: Maykon Jansen (Graduando em História pela UFMA)


Referências:

GONZÁLEZ, Edorta. Leyendas y Cuentos Vikingos. Madrid: Miraguano, 2008.
LANGER, Johnni. Galdr e feitiçaria nas sagas islandesas.
Brathair 9(1), 2009, pp.
66-90. Disponível em:
https://ufpb.academia.edu/JohnniLangerLANGER, Johnni. Seiðr e magia na Escandinávia Medieval. Signum 11(1), 2010,
pp. 177-202. Disponível em:
https://ufpb.academia.edu/JohnniLangerMITCHELL, Stephen. Blåkulla and Its Antecedents: Transvection and
Conventicles in Nordic Witchcraft.
Alvíssmál n. 7, 1997.
MITCHELL, Stephen A. Pactum cum diabolo and Nordic witchcraft. In:
TULINUS, Torfi (Ed.).
Galdramenn: galdrar og samfélag á miðöldun.
Reykjavík: Hugvísindastofnun Háskola Íslands, 2008, pp. 121-145.
RUSSEL, Jeffrey B; BROOKS, Alexander.
História da Bruxaria. São Paulo: Ed.
Aleph, 2008.
THOMAS, Keith.
Religião e Declínio da Magia: crenças populares na Inglaterra,
século XVI e XVII
. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

 




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