segunda-feira, 21 de agosto de 2017

FLOKI, LOKI E OUTRAS REPRESENTAÇÕES

O presente texto abordará o personagem Floki, da série Vikings (History Channel), objetivando analisar suas relações com o deus nórdico Loki em representações ou ressignificações. Para tanto, discutiremos ambos os personagens apresentando suas características e passagens, bem como comparando-as em análises dos momentos em que a série, abertamente ou sutilmente, transmite o deus no personagem. Considerando que o personagem Floki evoca não somente o deus Loki, mas também outras características da mitologia e sociedade nórdica, aproveitamos para tecer outras comparações pertinentes. Ao longo de suas três temporadas, o seriado Vikings abordou diversas narrativas mitológicas escandinavas, representadas em seus personagens ou mesmo mitos contados por estes. Sem dúvida, o personagem que mais apresenta tal abordagem é o construtor de barcos Floki. Já em sua primeira menção na série, quando Ragnar leva seu filho Björn para conhecer Floki, este indaga “Floki? Como o deus Loki?” e Ragnar responde “Sim, mas diferente”, “Como diferente?” Björn pergunta, “Ele não é um deus” responde Ragnar. De certo modo, essa fala inicial dita o rumo do personagem ao longo do seriado: se assemelha em diversos aspectos com o deus Loki, mas não se trata do deus em si. Gustaf Caspar Orm Skarsgård, o ator que interpreta Floki, é franzino e dá ao personagem trejeitos sombrios, observador, como alguém que está sempre tramando algo e, ao mesmo tempo, cômico. Nesse e em outros aspectos (como, por exemplo, seu estilo de luta, ao usar um pequeno machado e uma pequena espada) difere, claramente, dos outros personagens da série. Etimologicamente, Floki significa “Tufo de cabelo” e, curiosamente, o ator possui somente um tufo de cabelo no topo de sua cabeça. Na realidade, é bem provável que a escolha do ator e a manutenção de tal característica seja proposital: os nomes escandinavos (alguns países mantêm a tradição até hoje) são patronímicos, ou seja, referem-se ao nome dos pais, como, por exemplo, no caso do famoso poeta islandês Snorri Sturluson, ou seja, Snorri, filho de Sturla. Entretanto, o nome pode indicar uma característica da pessoa ou personagem, como, por exemplo, nos casos de Harald Bluetooth (dente azul) ou mesmo Ragnar Lothbrok (calças peludas). É evidente a aproximação dos nomes Loki e Floki (como a própria série mostra em sua apresentação), mas devemos notar que, etimologicamente, os nomes diferem, com o nome Loki podendo significar: “lobo; fim; aranha; ar (loptr); chama (logi); fogo (lodurr)” (LANGER, 2015, p. 281). A ausência de um segundo nome para o personagem corrobora a ideia de estar relacionado com sua aparência. Ainda sobre o nome do personagem, Floki não é um nome muito comum na Escandinávia, entretanto, um homônimo se destaca: Floki Vildergarson. Hrafna-Floki, como passou a ser conhecido, é tido como um dos primeiros colonizadores da Islândia. Em sua viagem ele levou três corvos que o ajudaram a encontrar a ilha (daí seu apelido: Hrafni significa corvo; HOLMAN, 2003, p. 145; 148). A relação do personagem da série com barcos e navegação pode, provavelmente, fazer referência a este personagem histórico. Loki é um deus enigmático, com um passado que o remete à linhagem dos gigantes, inimigos dos deuses de Asgard. Existe dúvida se a mãe de Loki seria uma giganta ou uma Aesir. Todavia, em uma sociedade patriarcal, como a nórdica da Era Viking, Loki só pode ser considerado um gigante, tendo em vista que seu pai é o gigante Fárbauti (LINDOW, 2002, p. 216). No passado mitológico, Loki tem três filhos que desempenham papéis importantes ao longo da mitologia viking: a serpente Midgard, o lobo Fenrir e a terceira filha, Hel, deusa do mundo dos mortos, sendo que todos os três filhos são frutos de sua relação com a giganta Angrboda (no decimo episódio da segunda temporada, Floki decide chamar sua filha de Angrboda, a exaltando como uma grande giganta). O mitólogo holandês Jan de Vries foi o primeiro a considerar a figura de Loki dentro do conceito de trickster (LANGER, 2015, p. 283). Segundo Queiroz (1991, p. 94):

Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico,
pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam,
dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo
presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão
de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora
prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência,
sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de
indignação e temor, por outro.

O autor ainda afirma que o trickster seria um intermediário entre deuses e homens e “um ator solitário que, em última análise, atua sempre em benefício do grupo como um todo” (QUEIROZ, 1991, p. 103). Durante toda a série, uma das características do personagem Floki, que é mais evidente principalmente na segunda e terceira temporada, é a sua relação com a religiosidade nórdica. Floki
crê veementemente na existência e na ação dos deuses no mundo terreno, a ponto de dizer, no sexto episódio da terceira temporada: “alguns homens desejam mulheres, Helga, alguns desejam o ouro, mas eu apenas desejo agradar aos deuses”. Já no oitavo episódio da mesma temporada, quando acusado por Helga de só pensar em si mesmo, Floki responde: “eu me importo com todos os seres humanos de Midgard”. Já no sétimo episódio da segunda temporada, há uma referência do trickster como pregador de peças em Floki: rei Horik pergunta se Floki havia falado sério quando ofereceu ajuda para libertar Jarl Borg. Na afirmativa de Floki, rei Horik pergunta o porquê e Floki responde “por uma piada”. Além de referências mitológicas, Floki, ao longo da série, representa aspectos da sociedade e religiosidade nórdica. Vemos Floki como um possível praticante de seidr (ao curar Ragnar com mágica), entalhador de runas, escultor e construtor de barcos, por exemplo. No sétimo episódio da segunda temporada, Floki aparece entalhando runas em uma peça de metal que, mais à frente no episódio mostra ser um cata-ventos (weather vanes — objeto decorativo para anexar na proa do navio), dado de presente para o rei Horik. Ao se referir às runas germânicas anteriores à Era Viking, excluindo o seu uso na literatura ou em atividades práticas do dia a dia, Brondsted (2004, p. 186) afirma que “não há dúvida de que elas eram, em primeiro lugar, símbolos mágicos e sagrados que o iniciado poderia empregar para o bem ou para o mal”. O autor argumenta que as runas possuíam poderes por si próprias e que não provinham do mestre que as entalhavam. Entretanto, como é dito na Egils saga,

Runes none should grave ever / Who knows not to read them; /
Of dark spell full many / The meaning may miss./ Ten spellwords writ wrongly
 / On whale-bone were graven: / Whence to
leek-tending maiden, / Long sorrow and pain. (Egils saga, LXXV)
[Runas não deve gravar / aquele que não as sabe ler; de magia
negra muitos / podem confundir o significado. / dez palavras
magicas escritas erradamente / no osso de baleia foram
gravadas; / daí a causa da donzela sofrer / longa dor e tristeza]

Levando em consideração tal passagem, vemos Floki como um personagem que detém o conhecimento da magia rúnica. A fala do rei Horik a seu filho, ao receber o presente de Floki, corrobora tal posicionamento: “É mais do que lindo, é poderoso e mágico, carrega o significado de tudo”. Outra possível referência às narrativas mitológicas aparece no segundo episódio da primeira temporada. Ragnar questiona Floki se a âncora do navio será entregue a tempo. Na cena, Floki aparece segurando uma mecha de cabelos loiros que diz pertencer à filha do ferreiro, da qual ele cortou a mecha como forma de ameaça, caso o ferreiro contasse ao Earl Haraldson sobre os planos de Ragnar. No Skáldskaparmál, de Snorri Sturluson, Loki corta os cabelos de Sif, esposa de Thor e, a fim de evitar a vingança do deus, promete conseguir que os anões forjem uma peça de ouro da qual cresceriam cabelos dourados. Além da peça de Sif, Loki faz com que os anões confeccionem mais cinco tesouros para os deuses: a lança de Odin, Gungnir, e seu anel, Draupnir; o martelo de Thor, Mjollnir; o javali de Frey, Gullinborsti e seu barco, Skibladnir (LINDOW, 2002, p. 100; 217; 266).


Figura 1: Floki segurando os cabelos loiros da filha do ferreiro.Figura 2: Floki entregando a mecha em troca da âncora. Fonte das imagens: 1ª temporada,
episódio 2
 

Na mitologia vemos que Odin fez uma irmandade de sangue com Loki — Lindow (2002, p. 218) entende tal atitude como uma tentativa de adiar o conflito mortal entre os dois —, e ambos aparecem em jornadas, juntos, em algumas narrativas. Por exemplo, no poema Reginsmál, junto de Hönir, ou no Haustlong, onde Loki chega a ser referido pelo seguinte kenning: “o amigo de Odin, de Hoegni e de Thor” (LANGER, 2015, p. 281). Floki afirma, no nono episódio da primeira temporada, em uma conversa com o rei Horik, Loki “é apenas um ancestral antigo”. Vale notar que na cena eles observam uma aranha em sua teia atacando uma presa, sendo uma possível relação com a etimologia de Loki. Em diversos momentos, a série indica Ragnar como descendente de Odin. Ao relacionarmos as descendências de Ragnar e Floki com os mitos relativos a Odin e Loki, podemos ver aí, novamente, representações de Loki em Floki. Eldar Heide (2011, p. 63) discute sobre a existência de dois Lokis: “o personagem mitológico e um vätte (espirito doméstico) vivendo embaixo ou ao lado da lareira. O personagem mítico seria derivado desse vätte”. O’Donoghue (2007), relaciona Loki com o fogo em diversas ocasiões, desde o personagem Loge da ópera de Wagner até mesmo uma recente representação do deus em um romance para crianças de 1975. A autora ainda argumenta sobre a relação de Loki com o fogo, pautada no mito da viagem à Utgarda-Loki: em uma série de disputas, Loki é desafiado em uma competição de comilança, a qual perde para o gigante Logi (chama), pois o fogo tudo devora. Vale lembrar que no Ragnarok, Loki combate os deuses aliado aos gigantes, e tudo será consumido pelo fogo.
Na série, dois momentos de Floki com o fogo merecem destaque. No segundo episódio da primeira temporada, após o massacre em Lindisfarne, Floki brinca com o fogo, queimando pedaços de manuscritos até o ponto de atear fogo no mosteiro inteiro. Ragnar, já sabendo a resposta, indaga a Floki sobre a autoria do fogo, e este somente ri em resposta. É possível (talvez conjecturando demais) relacionar essa cena com o próprio Ragnarok: alguns monges viram sinais do fim dos tempos logo antes dos vikings chegarem e, no fim, aquele mundo que eles conheciam realmente chegou a um fim — em chamas, como no fim dos tempos da narrativa nórdica. Ainda podemos ver, nessa cena, o papel de Floki como trickster, como um profanador de locais sagrados (QUEIROZ, 1991, p. 96). Um outro momento ocorre no oitavo episódio da terceira temporada, quando Floki se encontra preso na estrutura de madeira em chamas, que ele próprio projetou, esbravejando com os deuses, certo de que será consumido pelo fogo. Ao fazer o canto de guerra antes do ataque à Paris, no episódio sete da terceira temporada, Floki recita a estrofe quarenta e cinco do poema Völuspá, da Edda Poética, em nórdico arcaico: skeggǫld, skálmǫld / skildir ro klofnir. Segundo a tradução de Bellows (2004, p. 20): “Axe-time, sword-time, / shields are sundered” [Tempo do machado, tempo de espadas, /escudos são quebrados]. A passagem refere-se ao Ragnarok, a narrativa nórdica do fim dos deuses. Loki é o causador indireto do Ragnarok, ao armar a morte do deus Baldr. Como punição, é preso em uma caverna, amarrado pelos pés e mãos com as entranhas de seus filhos, enquanto uma serpente paira sobre sua cabeça, pingando veneno em sua face. Sua esposa Sgny recolhe o veneno com uma tigela, mas, toda vez que tem que esvaziá-la, o veneno cai sobre a cabeça de Loki, fazendo o deus se contorcer de dor, causando terremotos na Terra. A passagem é mencionada pelo próprio Floki a uma criança a qual pede um favor em um banquete — no episódio dez da segunda temporada —, ameaçando a criança que o mesmo aconteceria com ela caso contasse para alguém o que ele havia pedido. Outra representação da passagem aparece em trailers da quarta temporada da série, os quais mostram Floki preso em uma caverna da mesma maneira que Loki, muito provavelmente devido ao assassinato de Athelstan. 


Figura 3: Floki acorrentado na caverna (cena do trailer da quarta temporada do seriado). Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=IARD01_FEq0
  

Notemos as seguintes informações: alguns pesquisadores relacionam Baldr com Jesus Cristo, devido a sua ressureição e por ser iluminado, puro; apunição de Loki é devido à morte de Baldr, já a punição de Floki pela morte de Athelstan; claramente, Athelstan tem uma forte relação com o cristianismo e, portanto, com Cristo; Baldr é filho de Odin, o qual possui um enorme carinho pelo filho, assim como Ragnar tem por Athelstan. Ao compararmos essas características dos personagens, juntamente com o que já foi discutido sobre as descendências de Floki e Ragnar, vemos o Ragnarok representado de maneira muito interessante na série. Por fim, com base nas características do personagem e passagens abordadas, consideramos que, apesar de não apresentar Loki representado na figura de um deus, o seriado consegue ressignificar características e narrativas dele no personagem Floki. Levando em conta o que foi observado por Langer (2015, p. 286-7), que “[a]s reapropriações, ressignificações e mudanças artísticas que esta entidade sofreu ao longo das décadas mais recentes, em parte, são reflexos das próprias transformações que nossa sociedade vem mantendo com os mitos nórdicos”, podemos concluir que tanto o seriado quanto o personagem oferecem boas oportunidades para o debate sobre a mitologia nórdica.

Flávio Guadagnucci Palamin é doutorando em História pela UEM e membro do LERR/UEM e NEVE.  

Referências:

ANÔNIMO. Egils Saga. Tradução inglesa de W. C. Green. 1893.
BELOWS, H. A. Introdução, tradução e notas de Henry Adams Bellows. In: The
Poetic Edda: the mythological poems. Mineola, New York: Dover Publications,
INC., 2004.
BRONDSTED, Johannes. Os Vikings: História de uma Fascinante Civilização. São
Paulo, Hemus, 2004.
HEIDE, Eldar. Loki, the Vätte, and the Ash Lad: A Study Combining Old
Scandinavian and Late Material. Viking and Medieval Scandinavia, v. 7, 2011, p. 63-
106.
HOLMAN, Katherine. Historical Dictionary of the Vikings. Oxford: The Scarecrow
Press, 2003.
LANGER, J. Loki. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de mitologia nórdica:
símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 281-287.
LINDOW, John. Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs.
New York: Oxford University Press, 2002.
O’DONOGHUE, Heather. From Asgard to Valhalla: The Remarkable History of the
Norse Myths. London: I.B. Tauris, 2007.
QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do
trickster. In: Revista Tempo Social, São Paulo, v. 3, n. 1-2, 1991, p. 93-107.











sábado, 12 de agosto de 2017

A FEITIÇARIA NA ISLÂNDIA: O TESTEMUNHO DAS SAGAS



A prática da feitiçaria na sociedade islandesa da Era Viking pode ser entendida à luz das crenças cristãs posteriores, que tendem a vê-los como obra do mal? Os estudos sobre medieval Escandinávia tem vários campos de investigação. Por sua rica literatura vernacular dos séculos XII e XIII, mais conhecido sob o termo genérico "sagas" a Islândia produziu um testemunho original do panorama medieval. As sagas islandesas ou sagas de famílias contam a história dos primeiros habitantes da ilha boreal. Estes colonos vieram em grande parte da Escandinávia e participaram na maior parte das movimentações Vikings. Mas se a palavra "Viking" é atraente para o leitor, nós preferimos usar termos etnicamente conotadas como escandinavos ou islandeses, sendo os Vikings representantes de um grupo social particular da sociedade escandinava e não um denominador étnico. Nós nos focamos em uma parcela especial desta sociedade nórdica: a feitiçaria. Essa prática pertence ao passado da ilha, contemporânea a Era Viking (750-1050), mas relatada mais tarde nas sagas escritas por clérigos cristãos em sua grande maioria. Feitiçaria nórdica tem interessado muitos pesquisadores que estudam a Islândia medieval há mais de um século e é objeto de publicações anuais. Há um ângulo de abordagem, no entanto, não foi abordada até agora: a ótica dualista do bom e do mal, que é o cerne do pensamento medieval. Como parte de uma apresentação da feitiçaria nórdica para um público francófono, pareceu-nos interessante abordar o problema por esta abordagem. Para compreender a natureza e práticas (seiðr) da feitiçaria, que eram praticados na época dos Vikings, apresentamos três estudos de caso das sagas islandesas. Nós, então, recolocar estes exemplos no seu contexto histórico. A feiticeira ocupou vários cargos dentro da antiga sociedade escandinava. Aquele que tem o dom da segunda visão pode ser vidente, adivinho ou profeta (völur). Personagem de Þorbjörg lítil - völva, que aparece na Saga da Eric o vermelho (Eiríks saga Rauða) representa o exemplo mais significativo. A história se passa na Groenlândia por volta do ano 1000. A colônia islandesa liderada pelo Eiríkr o vermelho sofre de fome por causa de um inverno rigoroso. Þorkell, o mais poderoso agricultor (bændr), decidiu convidar o vidente para saber o que a próxima temporada vai ser feito e se a colônia pode sobreviver. A descrição que o autor deste vidente é único na literatura islandesa. Na verdade, ela preenche mais o papel de um xamã do que uma vidente do estilo europeu. É representada vestindo com peles de animais e carregando uma vara (gandr) necessário para a prática de feitiçaria. A arqueologia funerária nos ajudou a encontrar uma quarentena dessas varas mágicas em vários túmulos, seja na Escandinávia ou nas colônias escandinavas. Alguns deles eram elementos do totemismo xamânico, como padrões animórficos representando lobos e ursos. Note-se que estes animais, a conotação do mal da pena de autores continentais, são desprovidos de qualquer valor moral no quadro xamânico.


Figura 1: Recontituição da feiticeira Thorbjorg descrita na Saga de Erik, realizada pela
pesquisadora islandesa Lyda Langrakrsdottir.


Analisaremos mais atentamente a descrição de feitiçaria que oferece völva. Sua seiðr permite revelar o destino da colônia. A vidente busca a sua ligação com o outro mundo, o mundo dos espíritos, para obter a informação desejada. Para fazer isso, é colocado sobre o seiðjhallr um "cadafalso de seiðr". Em seguida, ela pede uma mulher para recitar um poema de encantação, a varðlokur. Este termo significa que a forma de atrair(loka) o Vorður, o espírito tutelar capaz de fornecer a informação, desde que seja confinado (outro significado da palavra loka) no círculo formado pelas mulheres cantando. Þorbjörg explica que os espíritos manifestaram-se para ela e finalmente revelou sua previsão para os agricultores: o clima vai melhorar rapidamente após a chegada da primavera. Uma frase que Þorbjörg troca com Guðríðr, demonstra que a mulher que recitar o vardðlokur, se mostra revelando o benefício desta magia. Diante da relutância da mulher Þorbjörg disse: " (ao fazer), este pode ser que tu deves suportar e tu não vais se tornar pior do que antes. " A prática desse tipo de feitiçaria é útil para a sociedade, e o fato de que eles realmente não envolvem qualquer tipo de condenação, não se tornar mal. A feiticeira também pode desfrutar de uma seiðr interessante, o mauolhado. Este é o caso de Þorgrímr o nariz, e sua irmã Auðbjörg, da saga Gísli Súrsson (Gísla saga Súrssonar). Börkr, um fazendeiro influente, quer vingar seu homem que Þorgrír assassinou. Ele pediu para te muitos assassinos, e acaba por ser o herói homônimo da saga, Gísli. Þorgrímr o nariz compra um boi para praticar seiðr e se envolve em práticas muito semelhantes às Þorbjorg, faz uma seiðjhallr, " para se envolver em feitiçaria e demonologia (skelmiskapr) ". Este termo, que vem de Skelmir, "espíritos" não pode ser traduzido para o francês por uma aproximação cristã: "diabolismos" ou "demonizações". Mas esta tradução é enganosa, porque é manchada com uma conotação moral, enquanto o termo islandês implica nenhum significado mal. Sem dúvida Þorgrímr o nariz encantou o monte funerário pois a neve não cai sobre em uma encosta do monte. O controle de elementos naturais faz parte dos atributos de feiticeira, como o xamã que sabe como comandar a chuva na estação seca. Auðbjörg a irmã de Thorgrímr o nariz, também se envolve em magia para comandar os elementos e causar acidentes. Ofendida com um fazendeiro chamado Bergr que humilhou seu filho Þorstein com um ferimento de um machado, ela se levanta de noite e vai para fora. O clima é calmo e sereno, e a feiticeira começa a girar várias vezes ao redor da casa Bergr na direção oposta ao sol, enquanto cheirando o vento. Portanto, o tempo começará a mudar: uma tempestade de neve surge, seguido por um degelo e depois aguaceiro deixando as encostas descerem, fazendo com que um deslizamento de terra cobrisse a fazenda, matando doze homens que se achavam lá. A resposta dos homens de frente a esta feitiçaria "má" é o linchamento do praticante. Gísli vinga-se dos malefícios ao Þorgrímr o nariz por apedrejamento até a morte, mas antes que ele tomou a precaução de colocar pele de animais (bezerro de acordo com uma versão) na cabeça. Esta pele é projetado para proteger os executores de feiticeiras do mau-olhado. Este padrão é usado frequentemente nas sagas. Note-se que estas execuções não são uma resposta direta à prática de seiðr, é tudo devido aos feitos, vingança privada, como é muitas vezes mencionado nas sagas, sem qualquer noção de heresia. Þorgrímr o nariz e Auðbjörg não são punidos porque eles se envolvem em seiðr, mas porque eles são prejudiciais para as pessoas que estão se vingando ou vingados: Mesmo que os benefícios desta vingança é desproporcional, o autor da saga não apresenta uma visão moral da sociedade e feiticeiros. Tudo continua a ser necessária. A saga das pessoas de Eyrr (Eyrbyggja saga) apresenta um caso diferente de mais uma feiticeira, conhecido como o "maravilhas de Fróðá". Estes eventos famosos ocorreram após a conversão da Islândia no ano 1000, com a chegada de uma feiticeira das ilhas as Hébridas: Þórgunna. Þórgunnna se muda para a Islândia, na casa do agricultor Þóroddr e vive sem intercorrências. Detalhe interessante: aprendemos que ela é uma cristã fervorosa que ia à igreja todos os dias para orar. Mas muito rapidamente, vemos que a sua presença cria fenômenos sobrenaturais. O primeiro é um evento climático curioso: uma chuva de sangue caindo sobre as plantações e não deixa o feno secar Þorgunna desfaneceu, assim como o seu ancinho. A pedido do dono da casa, ela diz que é o prenúncio da morte de alguém, no entanto, aprendemos mais tarde que era a sua própria morte que Þorgunna forneceu. Ela é uma vidente (völva) de talento, já que logo depois ela pega uma febre e morre. Mas antes de sua morte, ela fez Þóroddr prometer executar determinadas vontades, sob pena de “mal". Ela desejava ser enterrada em Skálholt, porque ela previu (por meio da segunda visão), que será um local importante: o primeiro bispado da Islândia. Em seguida, ela pede que queimar sua cama e cortinas de cama. Mas, devido à ganância de Þúríðr, a mulher de Þóroddr que se recusa a destruir uma bela roupa de cama, a maldição eventualmente caiu sobre a pequena comunidade. De acordo com esse relato, Þorgunna aparece como uma feiticeira, a despeito de si mesma. Ela tem o dom da segunda visão mas se recusa a usá-lo para atender às suas necessidades, como faz Þorbjorg lítil - völva. Ela prefere trabalhar nos campos para pagar a sua alimentação e alojamento. Ao contrário dos personagens discutidos acima que são pagãos Þorgunna mantém uma íntima relação com o cristianismo. Ela ainda quer ser enterrado em um terreno que será consagrada mais tarde. Finalmente, parece não controlar a maldição que se abateu sobre o povo da região. Ela tenta até sua morte, para evitar estas calamidades futuras e, assim, impedindo-os. A feitiçaria de Þorgunna é tal como transgride os limites da morte. Ela aparece de fato como fantasma duas vezes na saga. Estas aparições são curiosas como contraditório com a psicologia da personagem: entre a bondade e a vingança. A saga diz que os homens carregam o seu corpo para Skálholt, seguindo assim os seus últimos desejos. Privados da norma de hospitalidade - sem saber por quê – eles se vêem recompensados a noite pelo fantasma de Þorgunna manifestado para cozinhar para eles. A segunda aparição postmortem ilustra um outro aspecto do feiticeiro: o fylgja ou "espírito guardião". Este é um animal ligado a alma de um indivíduo. Neste caso, o espírito se manifesta na forma de uma foca que sai do fogo assusta Kjartan, o jovem da casa. Nós também podemos traçar um paralelo aqui com xamanismo e animais totens. Contudo novamente, fylgja não tem lado mau. O espírito de vingança de Þorgunna só vem com a promessa violada. Não há mal gratuito, é apenas algo necessário para a ordem cósmica adequada. As pessoas tem morrido devido ao aparecimento da foca, mas é principalmente o resultado da doença e não o próprio animal. O desaparecimento final da mente é interessante porque é feita por um padre exorcista, como se encontra no continente. E o remédio parece simples: queimar os lençóis e assim cumprir o desejo da falecida. Portanto, estamos lidando com um esboço realmente dualismo bastante simples em aparições recentes. Aqueles que respeitam os desejos da feiticeira são recompensados, enquanto os gananciosos são punidos.


Artigo de Grégory Cattaneo, Doutorando na Universidade de Paris Sorbonne/Paris IV.



Referência:


CATTANEO, Grégory. "La sorcellerie en Islande: le témoignage des sagas", in:
Histoire et Images médiévales, 31, 2010, pp. 18–22.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

SACRIFÍCIO A FREYR: NOTAS SOBRE RITUAL DE SACRIFÍCIO NO SERIADO VIKINGS



 

Na história do cinema e das representações artísticas ocidentais, as representações envolvendo rituais, festivais ou cenas religiosas da fé nórdica pré-cristã são muito raras ou praticamente inexistentes. Isso gerou um imaginário onde valores exóticos e mesmo macabros acabam ocupando as informações que a sociedade atual mantém sobre o tema da antiga religiosidade da Escandinávia (LANGER, 2016).

Em particular, uma cena da série Vikings (terceira temporada, terceiro capítulo: Warrior's fate) vem ocupando um particular interesse dos espectadores e mesmo do público ligado ao neopaganismo, por justamente conceder supostos detalhes de um ritual pouco conhecido entre os nórdicos, os sacrifícios relacionados aos vanes. Anteriormente, a série já havia detalhado outros cultos, mais famosos, envolvendo o templo de Uppsala na Suécia. Primeiramente, detalharemos a cena, analisando cada pormenor fílmico e, em seguida, realizaremos algumas reflexões sobre o imaginário do antigo ritual nórdico na arte ocidental.

No episódio, o acontecimento tem lugar em um assentamento nórdico da Inglaterra, onde, após a primeira e bem sucedida colheita, os pagãos resolvem realizar um culto ao deus Freyr para comemorar seu êxito. Ao som de tambores e chocalhos, o culto é presidido pela personagem Lagertha, iniciado após um símbolo ser marcado com sangue em um bloco de pedra. Ao contrário da maioria das pessoas presentes, Lagertha porta uma indumentária totalmente branca e realiza uma invocação ao deus Freyr, afirmando que ele é a deidade da luz e da abundância, filho de Njord e aquele que decide quando a luz e a chuva chegam e quando o solo será fértil. Uma procissão se aproxima portando diversas tochas acesas e reunindo-se em volta de um bovídeo, que é decapitado por um homem, sendo o seu sangue recolhido por diversas pessoas ao seu redor. Através do sangue sacrificado, ele deverá fertilizar a Mãe Terra com seu falo, fazendo com que o seu útero fecunde. Ao redor do sacrifício, uma estátua com figura antropomórfica aparece salpicada de sangue. Após isso, Lagertha molha os dedos com o sangue do animal, passando em diversas partes de sua face e peito, enquanto duas pessoas escorrem tigelas de sangue sobre seu corpo. Ela mesmo carrega outra tigela e, com ajuda de duas mulheres, borrifa o líquido sacrificial sobre a terra, aberta com sulcos para a plantação. Também destacamos a presença de uma trilha sonora de coro rítmico com compasso ternário, concedendo à cena um caráter ainda mais misterioso. 

Figura 1: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), reconstituindo a
morte de um bovídeo para o deus Freyr. Fonte da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

 
 

A realização de sacrifício (blót) a Freyr para obter boas colheitas (til árs) é algo respaldado em algumas fontes medievais, destacando seu aspecto de deus da fertilidade e fecundidade (BOYER, 1997, p. 58). A prosperidade devido a Freyr aparece em Hakonar Saga Aðalsteinsfóstra 14 e surge relacionado à expressão friðr (paz), onde o segundo brinde é dedicado a ele para se obter boas colheitas. A invocação de Lagertha, ao caracterizar o filho de Njord como deus da abundância, que controla as chuvas, os raios do Sol e a vegetação sobre o solo, advém de uma famosa frase de Snorri (Gylfaginning 24). O detalhe do falo é importante, pois é atestado em muitas fontes, como no relato de Adão de Bremen (Gesta Hammaburgensis IV) e na narrativa de Volsi (Völsa þáttr), além de comumente ser interpretado como o principal detalhe da estatueta de Rallinge (século X d.C.).

O detalhe da pintura a sangue de um desenho geométrico semelhante a um X com pontos, inserido dentro de uma forma quadrangular, não ocorre em gravuras de monumentos da Era Viking. Signos formados por quatro runas dispostas sobre duas hastes, denominadas pelos epigrafistas de cruzes rúnicas, surgem desde o período de migrações, como na fíbula de Soest (MAREZ, 2007, p. 130). Mas a forma apresentada na cena é mais condizente com os padrões simbólicos utilizados na Islândia a partir do final do medievo, popularizados nos famosos galdrastafur e nos grimórios islandeses.

O detalhe do boi decapitado é um pouco mais complexo. O sacrifício realizado para o deus Freyr (Freysblót) geralmente envolvia cavalos e javalis, e mais raramente bois. Na Viga-Glum saga 9 um boi velho é oferecido a este deus; na Brandkrossa þáttur 1, um fazendeiro mata e oferece um boi para Freyr, sendo em seguida realizado um banquete sacrificial (blótveizla) aos membros da comunidade. Este é um elemento ausente do episódio da série e fundamental para sociedades que dependiam diretamente de seus animais em um estilo de vida e clima inóspitos: o consumo e aproveitamento total das vítimas imoladas. Alguns pesquisadores consideram o blótveizla como um importante momento de unidade social, estabelecendo uma ligação mágica e propiciatória entre os deuses, os homens e seus ancestrais (BOYER, 1986, p. 186). O detalhe do sangue também é verificado em diversas fontes. O sangue
sacrificial (hlaut) de animais ou humanos era borrifado sobre estátuas por todo o templo, ou local da consagração, e nas pessoas (Kjalnesinga saga 12 e Hákonar saga góda 14, que também confirmam o detalhe das fogueiras e tochas da cena de Vikings, descritas em uma cerimônia em Trøndelag, Noruega). Alguns pesquisadores acreditam que a aspersão do sangue (stokkva fórnarblódi) era o momento central do rito sacrificial nórdico (BRAY, 2004, 125). Códigos de leis islandesas, como o Úlfljótslog, mencionam que os líderes utilizavam anéis que eram aspergidos de sangue sacrificial obtido em rituais. O sangue invocava o poder da deidade sobre o mundos dos homens, como em cerimônias para obter informações do futuro (blótspánn, inclusive citado no poema éddico Hymiskvida 1).

Quanto a uma mulher presidir o ritual para Freyr, apresenta-se como um detalhe equivocado. Justamente o simbolismo de virilidade e falicismo da deidade é algo exaltado nas fontes, seja pelo seu caráter de soberania, de poder militar ou de fecundidade, levando a maioria das descrições do freysblót a serem liderados por figuras masculinas (REAVES, 2008, p. 5). Quando surgem mulheres nas fontes, elas estão relacionadas a uma procissão com uma imagem dessa deidade em uma carroça, realizando uma peregrinação na primavera para abençoar a terra de uma determinada comunidade (como em Ögmundar þáttr) e relacionadas aos simbolismos da hierogamia. A túnica branca utilizada por Lagertha também é fantasiosa. Justamente pelo contrário, a cor preta era relacionada a Freyr — segundo a Gesta Danorum 1, os animais imolados ao deus eram geralmente de coloração escura —, também identificada à alma e à fertilidade em outras tradições pré-cristãs (REAVES, 2008, p. 10). 

Figura 2: Cena do episódio Warrior's fate (Série Vikings, terceira temporada), momento em que
Lagertha é banhada em sangue sacrificial. Fonte da imagem:
https://www.youtube.com/watch?v=Ykh5RuBLJTw

 


A cor branca tem sido uma opção canônica para os artistas europeus representarem os sacerdotes e sacerdotisas das religiosidades pré-cristãs em geral, desde o romantismo oitocentista, até mesmo para os druidas. Nas pinturas Ofring til Tor (1831, de Johan Lund) e Nerthus (1909, de Carl Emil Doepler), ambos os sacerdotes nórdicos possuem longas barbas e indumentária branca, este último um detalhe também presente na profetisa ressuscitada por Odin em uma pintura de Carl Doepler de 1900. Na cena da série Vikings, essa cor certamente foi utilizada não somente pela referência canônica da arte ocidental, mas para causar impacto cênico — logo depois do sacrifício, dois ajudantes despejam parte do sangue sobre o corpo de Lagertha, originando duas imensas manchas vermelhas por todo o comprimento da roupa. Algo que recorda a primeira cena da série televisiva Roma (HBO, 2005), quando a personagem Átia é aspergida com o sangue de um boi sacrificado, em referência ao mitraísmo oriental que penetrou no império romano. Como o grande público desconhece maiores detalhes sobre as religiosidades antigas da Europa, certamente os produtores de Vikings optaram por perpetuar uma referência fílmica consagrada e de forte impacto visual. Ainda mais fantasioso é o momento em que Lagertha, com ajuda de duas mulheres, borrifa o sangue sacrificial sobre sulcos retilíneos abertos sobre o campo (à espera da semeadura), numa referência à fertilidade. O equívoco nesse caso é que o ato de aspergir era considerado algo que devia ser realizado somente por homens, representando a fecundação de um ser feminino, a terra. Numa sociedade fortemente estruturada num simbolismo de dominação e submissão sexual, perpetuando o poder de penetração (o falocentrismo religioso, vide Hedeager, 2011, p. 115-118), seria lógico imaginar homens nesta tarefa. Até mesmo os camponeses europeus cristianizados (como a França do século XII d.C.) excluíam as mulheres destas ações que antecediam as colheitas, uma prática advinda dos tempos pagãos e que sobrevivia no cotidiano rural: “só o homem podia lavrar, malhar o trigo com o mangual ou podar as vinhas e as árvores (...) A terra era mulher, cabia ao homem fecundá-la” (VERDON, 2006, p. 47).

De maneira geral, a cena do sacrifício a Freyr foi mais correta do que a reconstituição de ritual em Uppsala, realizada durante a primeira temporada da série Vikings (episódio 8, Sacrifice): está menos sombria e exótica, sem sacerdotes calvos e com maquiagem escura sobre os olhos. Do mesmo modo, ao compararmos com outras cenas envolvendo religiosidade nórdica antiga no cinema (LANGER, 2016), ela é historicamente muito mais pertinente e detalhada, promovendo avanços no conhecimento de um público amplo sobre estes rituais antigos. O problema são seus pequenos equívocos, que tratamos ao longo deste pequeno ensaio, mas também de suas limitações sobre a funcionalidade dos deuses nórdicos. Devido a várias sistematizações, estudos
acadêmicos tradicionais ou popularizações de manuais, a visão que temos dos
deuses são de funções muito restritas e muitas vezes dicotômicas (especialmente a teoria da tripartição de Georges Dumézil). Odin e Thor são sempre vistos como deuses da guerra; Freyr, Freyja e Njord como deuses da fertilidade. Os primeiros seriam adorados pela elite guerreira, aristocracia e homens. Os segundos seriam cultuados exclusivamente por camponeses. Nesta visão, não há espaços para fronteiras ou dinamismos para outras funções sociais e outras características. Mas existem fontes que apontam elementos do deus Thor também para o mundo do campo: o simbolismo do martelo é um deles. Thor e Odin eram cultuados do mesmo modo por mulheres e nem sempre as deusas eram vistas como benignas ou defensoras extremadas do universo feminino.

No caso de Freyr, ele não era somente um deus da fertilidade ou adorado unicamente no universo rural. Seus aspectos de soberania e marcialidade são encontrados nos diversos cultos mantidos pela realeza, especialmente no sacrifício e consumo ritual de cavalos (DAVIDSON, 2001, p. 104), além do drama mítico e hierogâmico com Gerd (em conexão com a realeza sagrada). Ele está relacionado do mesmo modo a um simbolismo com embarcações e conexões com procissões náuticas com sentido religioso (funerário e também de fertilidade). A deusa Freyja não era somente ligada à sexualidade, mas também ao mundo marcial. O simbolismo do javali reflete a complexa natureza e os muitos aspectos que os deuses vanes possuíam e que vão muito além da sua mera classificação como deidades da fertilidade (PIRES, 2015, p. 11-22). Neste sentido, a série Vikings colabora para perpetuar a visão dicotômica que o Ocidente criou sobre os deuses nórdicos: de um lado, reis e guerreiros cultuando somente as deidades da guerra (os ases); de outro, os deuses que promovem a fertilidade dos campos (os vanes). Num mundo onde a fé não era estabelecida por textos sagrados, não existia sacerdócio profissional e a tradição era mantida pela oralidade, confluíam variações sociais e geográficas na religiosidade. Apesar do ritual servir basicamente como um momento de comunhão entre deuses e homens — e, neste sentido, a série Vikings é correta — ele era variável em sua forma e utilizado em contextos diferentes. O detalhe do sacrifício animal na cena do episódio (mas percebido sem a inclusão do blótzveila) pode colaborar para o público moderno pensar em um ritual mantido exclusivamente pela presença de uma morte sangrenta, sem maiores contextos.

Alguns analistas pensam atualmente a imolação nórdica de animais como reflexo da cosmogonia (a morte de Ymir e a subsequente criação das partes do mundo por meio de seus membros), onde o sacrifício explica a ordem da natureza e do mundo e a presença do hlaut seria a forma física onde o cosmos e a sociedade seriam renovados (BRAY, 2004, p. 135).


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Johnni Langer é professor na UFPB e membro do NEVE.
E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


Referências:

BOYER, Régis. Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997.

BOYER, Régis. Le blót. In: Le monde du double: la magie chez les anciens Scandinaves. Paris: Berg, 1986, p. 176-187.

BRAY, Daniel. Sacrifice and Sacrificial Ideology in Old Norse Religion. In:

HARTNEY, Christopher; MCGARRITY, Andrew (eds.). The Dark Side: Proceedings of the Seventh Australian and International Religion, Literature and the Arts Conference, 2002. Sydney: RLA Press, 2004, p. 123-135.

DAVIDSON, Hilda. The cult of Freyr. In: The lost beliefs of Northern Europe. London: Routledge, 2001, p. 103-107.

HEDEAGER, Lotte. Iron Age myth and materiality. London: Toutledge, 2011.

LANGER, Johnni. Fé, exotismo e macabro: algumas considerações sobre a Religião Nórdica Antiga no cinema. In: Revista Ciências da Religião, 2016 (no
prelo).

LANGER, Johnni. Blót/Sacrifício escandinavo. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, p. 75-77; 428-433.

PIRES, Hélio. Vaningi: o javali e a identidade dos Vanir. In: Revista Brasileira de História das Religiões – Dossiê: Mito e Religiosidade Nórdica, n. 23, 2015, p. 11-22.

REAVES, William. The Cult of Freyr and Freyja, 2008. Disponível em: <www.academia.edu/9715739>.

VERDON, Jean. Camponeses: heróis medievais. In: História Viva 34, 2006, p. 46- 48.