quarta-feira, 12 de julho de 2017

OS GATOS E A BRUXARIA NÓRDICA


Os gatos como animais domésticos são companheiros do homem desde o período Neolítico. Na Escandinávia da Alta Idade Média eles eram muito empregados como animais protetores das fazendas, mas também eram percebidos em termos religiosos. Nas sagas islandesas, algumas praticantes de seidr utilizavam luvas e acessórios feitos de gatos brancos, relacionados simbolicamente com a deusa Freyja. Para Hilda Davidson, isso é um elemento que indicaria que os gatos seriam alguns dos espíritos animais utilizados pelas videntes em suas jornadas xamânicas. Segundo Brenda Prehal, na sociedade nórdica pré-cristã o gato era associado com a fertilidade (cabeças de gato eram vistas como objetos propiciadores), o mundo da casa e utilizado como proteção mágica. Também no barco funerário de Oseberg foram encontrados diversos objetos e relevos com formas de gato, como um poste (figura 1), conectando estes animais com o mundo dos mortos e a deusa Freyja.

Na Europa continental, durante a Antiguidade até meados do feudalismo centro-medieval, os gatos controlavam a população de ratos em cidades e mosteiros, sendo uma figura extremamente positiva. Muitos santos eram associados com gatos, sendo Santa Gertrudes de Nivelles a sua patrona; Santa Agartha era chamada de a “gata santa” e Santo Yves era representado como um gato. Em diversos manuscritos datados dos séculos XI e XII, os gatos são representados geralmente em cores claras, definidos como predadores de ratos pretos e um animal tipicamente doméstico. Algumas iluminuras o associam com a mulher de Noé, enquanto este patriarca é relacionado ao cachorro. Desde modo, percebemos que os felinos também eram símbolos do feminino e figuras positivas para a cristandade desta época.

Figura 1: Poste com cabeça de gato (174) da sepultura de Oseberg (Noruega, séc. IX).
Fonte: Prehal, 2011. Figura 2: Freyja voando em um gato, Catedral de Schleswig-Holstein,
Dinamarca (atual Alemanha), séc. XII.


É com o início do imaginário da bruxaria enquanto seita diabólica e herética que este animal ganhou conotações malévolas para o imaginário cristão, a partir do século XIII. Em 1232 o decreto papal Vox in Rama conclamava para a perseguição dos heréticos. Neste documento, o papa Gregório IX descreve as atividades do diabo no norte da Alemanha, incluindo uma cerimônia de iniciação, onde os participantes realizam um obsceno beijo em um grande gato preto. É o início de uma perseguição e de um preconceito que se mantém até nossos dias em relação aos felinos de coloração escura. Isso colaborou em parte para a extensa difusão da peste negra no século XIV, pois os ratos propagadores da peste bubônica já não tinham predadores em muitas cidades e vilas, visto que os gatos haviam sido exterminados pela população em geral. 
Na Escandinávia após a cristianização, percebemos que ao mesmo tempo em que algumas simbolizações antigas foram preservadas (em termos de pensamento e práticas mágicas), elas se incorporam aos poucos ao novo
imaginário introduzido pelo continente, mas essa transição não é fácil de ser
estudada. Um dos melhores exemplos disso é a imagem preservada na catedral de Schleswig-Holstein (Dinamarca, atual Alemanha), realizada em 1200. Freyja parece voar em um grande felino de cores claras, sem roupa e portando um corno (figura 2) – uma imagem claramente pagã em um contexto cristão, mas não percebemos ainda nesta pintura uma associação direta com a noção de heresia ou de mal diabólico.

Uma narrativa preservada em uma saga islandesa parece apontar mais diretamente para o novo imaginário, onde o gato preto foi associado com o mundo maligno das trevas. Na Vatnsdæla saga 28 (c. 1300) um homem chamado Þórólfur sleggja vivia na região de Vatnsdalr (norte da Islândia), com 20 enormes gatos pretos e selvagens, gerando um grande medo em seus vizinhos. A casa de Þórólfur acabou sendo queimada, mas mesmo após a sua morte as pessoas evitavam o local por pavor dos gatos.

Figura 3: O demônio surge como um gato preto diante de um santo e sobe por uma forca,
manuscrito KB 72 A 24 fol. 313v, 1400-1410. Figura 4: Figura de gato entre um demônio e uma mulher, Igreja de Maria Madalena, Dinamarca (1475-1510).


Mas além do novo imaginário criado na cristandade, os gatos ainda eram usados para operações mágicas no cotidiano da população. Algumas praticantes de magia da Suécia que foram presas e condenadas pela inquisição durante o baixo medievo, puderam ter parte de suas práticas desveladas, como galna kadhrin (Catarina a louca) em 1471 e Margarida em 1490. Entre os principais elementos utilizados para a feitiçaria amorosa, por exemplo, estavam cabeças e os cérebros de gatos – mas para objetivos diferentes: enquanto Catarina utilizou o feitiço para reaver o amor perdido para uma mulher, Margarida empregou o mesmo para causar impotência em um homem. Outra tradição mágica conhecida na Escandinávia (mas original da Alemanha) era a crença nas pedras de gato, supostamente encontradas no crânio dos felinos e que teriam propriedades de aumentar o desejo sexual.

Uma das últimas referências medievais nórdicas sobre este animal é uma pintura encontrada na igreja de Maria Madalena (Dinamarca), realizada entre
1475 a 1510 (figura 4). Nela, um gato encontra-se entre uma mulher e um demônio, entrelaçando-se para lamber suas partes íntimas. Segundo Stephen
Mitchell, trata-se de uma representação do diabo. Assim, de uma concepção positiva, onde o animal foi um símbolo de divindade, agora ele passa a ser a própria representação do maligno e das trevas. Com a imensa propagação deste último imaginário na modernidade, o gato preto ainda é visto em termos extremamente negativos, demonstrando que a superstição e o medo não são características apenas do passado remoto, mas infelizmente ainda persistem em nosso tempo.

Autor: Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)



Referências:

BOYER, Régis. Le monde du double: la magie chez les anciens Scandinaves. Paris:Berg, 1986.
HEDEGUS, Susan. The unlucky black cat. Cat World, 2010, pp. 40-41.
HEDEGUS, Susan. Exploring the symbolic feline presence in art´s biblical
masterpieces. The Universe, 10 de fevereiro de 2008, pp. 16-19.
MITCHELL, Stephen. Witchcraft and Magic in the Nordic Middle Ages.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2011.
PREHAL, Brenda. Freyja´s cat: perspectives on recent Viking Age finds in
Þegjandadalur North Iceland. Dissertação de Mestrado em Artes, Nova
York: Hunter College, 2011.
WERNESS, Hope. Cat. The continuum encyclopedia of animal symbolism in art.
New York: Continuum, 2006, pp. 72-76.

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